quinta-feira, janeiro 18, 2007

Meu Primeiro Trabalho Publicitário

Vou lhes contar como arranjei meu primeiro trabalho publicitário. Em uma segunda-feira de manhã, no mês de outubro do ano passado cheguei de volta à Belo Horizonte. Parei direto no Centro, de maneiras que fui caminhando para o prédio da faculdade. Tinha aula logo às oito horas, os becos sujos de BH começavam a se recolher ao sono matutino e os trabalhadores do comércio, catadores de lixo e garis ainda nem haviam começado o expediente. As lojas, a maioria, fechadas. A maioria das biroscas do lugar ainda possui aquelas portas de aço dobrável, grandes, as quais se prende com cadeados no chão. Alguns serviços mais essenciais começavam a abrir. A cada cinco minutos, chegava mais um ônibus, azul ou vermelho, tanto faz, todos vinham lotados de gente, pessoas vindas de fora chegam aqui todo dia para trabalhar, estudar, se tratar das enfermidades, procurar emprego ou então, comprar... Enfim, elas vêm para fazer a cidade.

É dentre essa gente que vemos, velhinhas cheias de pano, chalé na cabeça, acompanhadas de senhores de chapéu surrado. Velhos que parecem ter deixado a enxada encostada a um canto do lugar proveniente, a roça com certeza! São bastante distintas apesar da simplicidade, e nota-se a bondade em seus olhares assustados. Por mais que venham à cidade grande, nunca deixa de ter um olhar de deslumbramento diante de tanto concreto e tanta gente!

Ao contrário de São Paulo, BH ainda é uma cidade que dorme e acorda. É, aliás, uma cidade que acorda tarde, de ressaca. Principalmente em se tratando do prédio da faculdade onde estudo, que as 7:00 da manhã se encontrava ainda fechado. Estava neste estado de coisas, olhando o passar das coisas e acontecimentos, sonolento e de barriga vazia quando decidi me dirigir a uma lanchonete ali perto, motivo principal: vazar a urina da bexiga e depois, quem sabe, pedir um café.

O banheiro, como a maioria dos banheiros do Centro, era sujo e ficava no segundo piso do estabelecimento. O lugar fedia a amônia, que é como a urina fora do vaso fede depois que seca, pra variar, havia uma privada com armazenador de água suspenso e cordinha encardida. No chão, uma barata ainda viva, de cabeça pra baixo, com suas patinhas acenando. Podia jurar que me dizia: “Olá, bom dia!”. A julgar por meu estado ainda torpe de noite mal dormida em banco de ônibus interestadual é muito provável que tenha respondido ao cortês cumprimento: “Olá D. Baratinha, como foi seu domingo?”. Não esperei resposta, a mulher da faxina matinal do recinto esperava do lado de fora. Não estou sendo justo em falar assim do banheiro, antes dele ter sido limpo, afinal, todos sabemos (ou imaginamos) o estado em que os bebuns de domingo deixam a privada e o chão do W.C.

Lavei as mãos e deixei o banheiro aos tratamentos da senhora de branco. Desci as escadas e caminhei para a bancada do bar. Estava a ponto de pedir um café quando tocaram no meu ombro: “Deixa que eu lhe pago o café” e, dirigindo-se para a garçonete: “Preta, dois cafezinhos, por favor, um pra mim e outro pro meu amigo aqui!” Quem, me pagava o café era um senhor, não um dos velhos de fora da cidade, percebia-se logo pelo seu olhar mais malicioso, que aquele já manjava das coisas do lugar, anos de experiência na malandragem. De minha parte, não conhecia o “meu amigo aqui”, de pé, ao meu lado. Vestia terno de linho branco com uma camisa de casimira preta com estampas pequenas em cinza, ou seriam bordados?! Não sei, não lembro... Tinha no pulso e no pescoço um relógio dourado e um medalhão de nsrª feito de ouro, ou algo que fingia muito bem ser o metal amarelo precioso. Na cabeça, um chapéu de feltro, também branco. Se o visse de relance diria se tratar do músico cubano “Compay Segundo” que conversava comigo em português naquele dia. Mas ao contrário do violeiro, seu rosto não era plácido, acolhedor e divertido, mas sim composto de rugas de uma antiga malandragem perversa que deve ter dado agora lugar a apenas um rancor escarnecedor. Parecia um bicheiro, ou um antigo cafetão da praça. Decerto um mafioso, se no Brasil tivesse dessas coisas, até que há em São Paulo, mas não aqui em Belo Horizonte. Falava como quem sabe que conseguirá me chantagear para o que quer.

Reparou minha pasta de trabalhos no banco ao meu lado e perguntou: “Você desenha?”, anuí com a cabeça afirmativamente enquanto soprava o café que havia chegado. Ele prosseguiu:

– “Bom, tenho um trabalho pra você!”. Disse sacando do bolso um papel que desdobrou em cima do balcão, ao meu lado. Era um anúncio preto e branco muito tosco de um protesto contra a ALCA. O anúncio vinha acompanhado de uma chamada para um show de bandas de heavy-metal que, pra minha sorte, não tive a felicidade de guardar o nome. No papel tinha um sujeito dando um tiro na própria cabeça, sangue jorrando, e, ao lado, um sifrão, o que deixava a composição ainda mais sinistra.

Sorri de lado, ele retrucou:

– “Não ria rapaz, quero que faça um igual pra mim”. Sorveu o café num só gole e acendeu um charuto:

– “Vai fazer pra mim, um anúncio parecido. Pra minha firma”. Disse “firma” como se fosse algo muito gozado pronunciar aquela definição para seu próprio negócio.

– “Venha, vamos subir ao meu escritório”. Jogou as pratas com indiferença no balcão e saímos do bar. Reparem, meus leitores, que não afirmei que faria a propaganda para ele, mas havia algo de hipnótico em seus comandos, e seria, afinal, meu primeiro trabalho. Segui-o, não muitos passos a partir da lanchonete, e enfim entramos em numa daquelas portinholas com uma escadaria estreita que nos conduzem às salas superiores dos prédios do Centro. Chegando na sua “firma” encontrei, na entrada, a placa: “Extorquato Quinhão”. Nome que supus ser o dessa figura que à nós dois abria a porta:

– “Entre!” Ainda fumando, sentou-se atrás de sua mesa, apagou o charuto com o dedão e guardou-o no bolso do paletó, não sem antes dar uma última cheirada lateral e soltar um “AH!”. Fungando, dirigiu-se a mim agressivamente:

– “Porque ainda não fechou a porta?!”. “Vamos, sente-se”. “Agora me escute bem, rapaz. Tá vendo aquela mesa ali?!” E apontou para uma prancheta de desenho com lume em cima posta na sala ao lado. Era óbvio que eu via, não respondi. “Pois bem, vais desenhar pra mim”. “Quero esse trabalho, hoje!”. “Deixarei-o trancado aqui, Soraya, minha secretária, chegara às 9:00, você abre a porta pra ela”. “A Soraya deve ficar trabalhando na ante-sala, aproveite e fique de olho nela por mim”. “Depois que ela chegar pode servir-se do café”. “Quando acabar seu trabalho, ela vai me telefonar pra avisar que está pronto”. Eram 7:20, minha aula começava às 8:00, nunca conseguiria terminar o serviço a tempo antes de começar a aula as 8:20. Havia me metido em uma arapuca daquelas.


– “O trabalho é o seguinte: vais me fazer um sujeito igual a esse do cartaz que te dei, mas bem maior e no centro do papel”. “Em cima, colocas o nome da minha empresa, em baixo, tu pões esses dizeres”. Rapidamente, escreveu um bilhete com o quê eu deveria colocar no resto do trabalho. Sua letra era cursiva, parecia de criança, acho que é o que acontece às pessoas ansiosas para largar os estudos, querem apenas aprender à escrever, não querem saber de firulas mais.

Comecei rapidamente a trabalhar. A sorte é que estava com meus materiais, nem todos, mas o necessário para fazer o anúncio. Não imaginava o que poderia ser se tivesse de dizer ao seu Extorquato que tinha de sair para comprar material.

Tomando por base o anuncio, fiz a figura do sujeito mandando bala na cabeça! Compenetrado no trabalho, tomo um susto quando a campainha da sala toca. PÉÉÉÉÉ. Era Soraya, a secretária. Fui abrir a porta. Não era bem uma secretária, parecia mais ser uma garota de programa particular do sr. Quinhão. Apesar das roupas exageradas e do perfume inebriante, a menina tinhas seus méritos.

Enquanto entrava para o biombo da ante-sala me olhou de soslaio: “Você é o desenhista que o Dr. Extorquato contratou hoje?”. Engoli meu gogó e disse que sim. Já de costas, Soraya reclinou-se desnecessariamente para limpar seu assento, na certa para mostrar seus dotes abundantes. Não dei ligança, não podia me atrever a me meter com a mulher de um chefe que julgava ser mafioso, dirigi-me logo de volta à prancheta.

– “Hei, não vai querer um café?”

– “Não, obrigado, tenho pressa com o serviço”.

– “Humpf, homens, sempre apressados!”

Não liguei, continuei o trabalho. Tive de me esquecer da hora e fazer o melhor que me era possível em condições tão estranhas. Mas o desenho foi saindo, até que em pouco tempo a partir dali, já estava a terminar a figura. Eram 10:15, a aula devia estar no intervalo, Soraya, enjoada de nada fazer se levantou para ver em que eu estava ocupado. Eu, naquele momento, retocava as letras com os dizeres do anúncio. Ao ver a figura, a secretária disse:

– “Huh, isso só podia ser coisa do Extorquato mesmo!”. Debruçou-se para ver o melhor o trabalho, seus seios quase pulavam do decote, sem dúvida, era muito vulgar, mas não parecia ser má. Estava me aporrinhando com perguntas inúteis quando se fez um barulho na porta. Rapidamente aprumou-se e puxou a saia de couro para baixo, mais perto do joelho.

Não era Extorquato ainda, mas sim, o que devia ser um dos seus capangas, codinome: Juca Tinhoso. Sujeito meio grosso, tratava a saliente Soraya de modo duro:

– “Cadê o dinheiro que o Dr. disse que deixaria pra mim aqui no escritório?”

– “Você fez o serviço, Juca?”

– “Claro, minha filha”. E mostrou uma foto para ela. De longe, não pude ver o que era, mas a cara que a Soraya fizera foi de visivelmente de nojo. A secretária abriu a gaveta de sua mesa e pegou uma chave, a seu modo, caminhou para um arquivo ao lado da mesa do sr. Quinhão, pegou a grana e deu-a para o bruto que partiu sem agradecer.

Depois disso Soraya voltou à sua mesa, continuou a tarefa de lixar as unhas, compenetrada. O telefone tocou: era uma amiga sua, bateram um papo furadíssimo, o que me ajudou a concentrar apenas no trabalho, mesmo assim peguei o fim da conversa e fiquei esperando...

– “Acabei!” Eu disse depois dela ter posto o aparelho no gancho. Ressabiada, puxou novamente o velho aparelho, o telefone era preto, ainda um daqueles de disco, que fazem “tec-tec-tec” a cada número. E falou depois de algum tempo na linha:

– “Totô?! Sou eu!”. A voz de Extorquato é tão ríspida que dava pra ouvir de onde eu estava:

– “Já disse pra não me tratar assim?! Principalmente no escritório”.

– “É que o menino já terminou”.

– “Ótimo, vou indo praí”.

Extorquato realmente não demorou, pegou o desenho e caminhou pra sua mesa dizendo: “Bom, rapaz, muito bom!”. Sentou-se e voltou acender o charuto que havia guardado de manhã. “Era isso mesmo”. “Vou pedir para fazer cópias e pregar nas ruas do Centro hoje mesmo”. Fiquei feliz, o desenho era uma merda, mas ouvir elogios, mesmo vindo de um sujeito sinistro como seu Extorquato, ainda assim, possui algum efeito. Contudo, eu me quedava de pé, esperava, Soraya ao meu lado. Extorquato virou-se pra ela e vociferou:

– “Que que tá fazendo aí?!”. “Já pra sua mesa!”. Resmungando comigo: “Vagabunda ordinária”. Olhou nos meus olhos e perguntou:

– “E você?! Vai ficar plantado aí?!”. “Tá esperando alguma coisa?”.

– “Espero receber pelo que fiz, sr. Extorquato!”, retruquei.

– “Há! Essa cambada de hoje!”. “Não se lembra do cafezinho de hoje de manhã?”. “Pois então, acha que lhe foi de graça?”. “Vai-te embora, rapaz, recolha-se à sua paga!”.

Eu estava saindo quando ele virou e disse sorrindo cafajestemente:

– “Ah! Rapaz!”. “Se precisar de dinheiro fale com a gente”. “Soraya, dê nosso telefone pra ele”. A secretária me passou o telefone com o número, número que Extorquato havia instruído-me no bilhete não pôr no cartaz. Creio que para manter o sigilo perante a polícia. O povo do Centro já deve saber onde encontrar o ‘seu’ Extorquato. Atrás do cartãozinho, um outro telefone escrito à mão, deve ser o particular de Soraya.

Saí dali sem mais delongas, quase às 11:00, minha aula estava, afinal, perdida. Tudo em troco de um trabalho cuja paga me foi um cafezinho de lanchonete copo-sujo.

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