sexta-feira, março 09, 2007

Clipping Poético

Em 2005, começando ainda o mestrado de economia, resolvi conhecer os sebos da região em volta da faculdade. Não me lembro bem o que estava procurando, talvez não fosse só a fome de livros, mas simplesmente algo mais mundano e corriqueiro como achar um restaurante bom e barato, como era nossa também principal preocupação naqueles dias iniciais do programa de nivelamento.

Acho que, na verdade, era mesmo o último assunto que eu estava procurando. Acompanhava-me uma amiga, colega do mestrado, por quem tenho estima infindável (acho que talvez estivesse também conosco o colega que logo levaria o apelido característico por suas feições orientais, embora, possa se ver de imediato que se trata de um brasileiro nato). Então, procurávamos alguma coisa quando passamos por uma loja distinta que se mesclava na confusão da rua dos Tamoios. No entanto, para nós, não havia como deixar de ser percebida, são apenas uns 2,5 ou 3 metros de largura na entrada e apenas uns quatro degraus a separam da calçada, já nessa escada, a loja dependura livros e revistas que vão subindo até o teto. De fundo, acho que devem haver uns 5 a 7 metros, toda coberta por estantes com livros. Os últimos só podem ser alcançados por meio de uma escada daquelas que os bibliotecários usam para organizar seus livros. Há ainda um compartimento que separa a "loja-caixa" em duas, disposto a quase uns dois metros de altura no fundo da loja (como os que tive oportunidade de observar em outros sebos de BH). Enfim, como bem descreveu o professor João Antônio: “sua geometria – dois corredores, com prateleiras até o teto, que só se alcançam com escada alta, e uma prateleira central dupla – não permite grande circulação. Penetrar na livraria é encaixar-se nela, é quase aderir às suas paredes e livros, é deixar-se envolver pela bela profusão de livros”.

É um casulo que leva o nome de seu dono: “Livraria Amadeu”.

Naquela época eu não sabia de nada disso, o livro do professor João Antônio, sobre o qual passarei referência daqui a algumas linhas, ainda não havia sido escrito. Mas entramos na loja, e como ávidos economistas, fomos direto à seção de nossas paixões, que fica logo no começo da lojinha, acho que pelo motivo do sebo se situar pertinho da Faculdade de Ciências Econômicas, mas em nossa geração o costume de ir aos sebos está sendo deixado de lado, sinto uma pena por isso. Minha colega logo me apontou o bem editado trabalho do professor Paul A. Samuelson, dois volumes grossos de um manual básico de economia, edição da década de 70, cheios de gráficos coloridos em vermelho, azul e verde, tecnologia de impressão avançada para época, primazia da didática. Olhamos vários outros livros, acho que partimos para a seção de literatura brasileira, mas, no fim, não compramos nada. Nesse ínterim, distinguiu-nos o modo como fomos tratados pelo senhor que parecia ser mesmo o dono da loja. Cortesia e humildade que em nada relevam a dignidade de caráter que parecia estar contida em seu espírito. Ao sairmos entregou um cartãozinho, meses depois voltei à loja do seu Amadeu para comprar os volumes do Samuelson.

Embora nada saber, não duvidaria se me dissessem ser, aquele senhor, uma figura importante das livrarias de Belo Horizonte, com histórias de vida e livros interessantes a serem contadas onde realmente se confirmavam sua sabedoria e nobreza. Pois bem, ano passado fiquei surpreso ao ser lançado um livro sobre a "Livraria Amadeu", escrito justamente pelo erudito professor João Antônio de Paula, que ministra aulas em nosso departamento de economia. Choveu muito no dia, o que me impediu de ir ver o lançamento do livro ocorrido no museu de Artes e Ofícios da praça da Estação. É o sétimo livro de uma coleção que resgata a história de Belo Horizonte, seus pontos pitorescos mais marcantes e seus causos (referências: http://www.bhdecadaum.com.br).

Felizmente, minha memória de elefante, que talvez não seja comparável do sr. Amadeu, mas é também boa, me fez lembrar de correr atrás do livro. Comprei-o e li-o de uma vez, uma bela homenagem à pessoa do Amadeu, à sua livraria, à Belo Horizonte e sua poesia. Há um trecho do professor João Antônio que parece mesmo poesia, embora não na forma de verso:

“Na vida das cidades os sebos são espaços especialíssimos, porque são a um tempo, catedrais e capelas, ilhas do tesouro para alguém, ração básica para outros. Para alguns o sebo é o esconderijo possível do livro que se procura a vida inteira, o raríssimo exemplar, que completará uma coleção sem a qual não há apaziguamento. Para outros, a maioria, o sebo é também uma maravilha, a possibilidade de comprar a preço acessível o livro didático, o manual prático que o aprendizado ou o ofício exigem, de recuperar um velho livro, que, lido na infância, relido hoje, talvez possa convocar tempos mais felizes”.

A quem também gostar procure pela coleção. Quem é de sebo, procure especialmente por esse. Despeço-me com Andrade, Drummond e Vinícius:

Noturno de Belo Horizonte

(Mário de Andrade)

“ Dorme Belo Horizonte.
Seu corpo respira leve o aclive vagarento das ladeiras...
Não se escuta sequer o ruído das estrelas caminhando...
Mas os poros abertos da cidade
Aspiram com sensualidade com delícia
O ar da terra elevada.
Ar arejado batido nas pedras dos morros,
Varado através da água trançada das cachoeiras,
Ar que brota nas fontes com as águas
Por toda a parte de Minas Gerais.”

Canção sem Metro, A bolsa e a Vida

Carlos Drummond de Andrade

“Amava em ti a graça das conciliações; eras frugal e fantasista, burocrata e boêmia; tua igreja metodista, pequenininha, enfrentava sem prosápia a lauta matriz de São José; o caminho era um só, escolhia-se a porta que agradasse. E a Praça da Liberdade, com seu Itacolomi de cimento para matar saudades de ouro-pretanos, era metade do Governo, metade dos namorados, em conspiração com as rosas.

Belo Horizonte subitamente trágica na matança dos guardas-civis e no crime do Parque; cidade de mulheres que viravam homem, de homens que viravam mulher; de fenômenos que vinham pelo telégrafo divertir a malícia do carioca, tecidos pela malícia maior do mineiro.

O melhor ponto para completar-te será o terraço de um desses edifícios da Avenida Afonso Pena? A Praça do Cruzeiro, o alto da Serra do Curral? Prefiro o arco modesto do viaduto, miradouro da memória, de cujo cimo tentei às vezes restaurar o romantismo, para consumo próprio e desprazer da polícia.

Costumava haver desencontro entre nossa juventude e nossa cidade. Culpamos as ruas pelo que nos acontece interiormente. Clamei contra ti, Belo Horizonte, em instantes de fúria triste. Destruí tuas placas, queimei tuas casas, teus bondes; ao despertar dessa angústia, vi que o amor escolhe caminhos difíceis para chegar a seu destino. Davas-me lições de paz, que eu interpretava como picadas de tédio.”

A estrofe do poema de Vinicius de Moraes faz uma brincadeira com os dizeres em latim “Libertas Quae Sera Tamén” da bandeira de Minas, brincadeira que sempre imaginei quando criança:


Pátria Minha

Vinicius de Moraes


Mais do que a mais garrida a minha pátria tem

Uma quentura, um querer bem, um bem

Um libertas quae sera Tamem

Que um dia traduzi num exame escrito:

"Liberta que serás também"

E repito!

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